Do oitenta ao oito

Cada percurso tem a sua história. Por mais provas em que participemos, nunca lhes encontramos qualquer similitude. Surgem-nos a toda a hora imponderáveis e, por vezes, perante situação idêntica, raciocinamos e agimos de modo completamente diferente.

Umas decisões com resultados agradáveis, outras, originando asneiras de fazer chorar os afloramentos mais empedernidos. Mas é precisamente estes desafios constantes e variados, que caracterizam e enriquecem a modalidade, transformando-a num manancial de comportamentos singulares.

O 2º Meeting Internacional de Arraiolos, não poderia vir mais a calhar, para confirmar a minha teoria. Em vinte e quatro horas, passei de um estado de euforia, para momentos deprimentes e de frustração. Num dia, uma distância média, com 4.900 metros e 18 controlos; no outro, um percurso longo, com mais dois quilómetros e meio e menos cinco pontos para picar.

Se no primeiro apanhei um sol simpático, no segundo fui fustigado com chuva durante todo o percurso. Na jornada inicial, quase não cometi erros; na prova de domingo, nem sei se efectuei alguma pernada correcta (talvez duas ou três). No final da média, todo eu era sorrisos, fresco como uma alface (sprint a azul!), pleno de satisfação por uma prestação bastante atilada; quando terminei a longa, mal conseguia respirar e nem queria que me dirigissem a palavra, tal era o meu desconsolo.

Na etapa da Herdade dos Coelheiros, enlameei-me com fartura, no entanto, ao transpor a vala do “200”, tomei um banho involuntário, que me lavou o fatinho e me conferiu alguma dignidade na apresentação à meta. Já na Gafanhoeira, apesar de me ter atolado à brava no “pantanal”, a chuva ia compondo a aparência, mas nos trezentos metros finais, barrei-me de lama até aos queixos (nem dava para distinguir a cor das botas).

Enfim, tudo correu bem no primeiro dia, para nada bater certo no segundo. Afinal, toda uma dicotomia que traduz as “berdadeiras” vicissitudes da Orientação – hoje, glorioso, amanhã, “pastor”.

Voltando à distância média, que até nem começou muito bem, pois sentia um inexplicável cansaço, tomei uma opção menos aconselhável para o primeiro ponto (pernada mais extensa) e só não deitei tudo a perder, porque o “Santinho dos Orientistas” estava de olho em mim.

O certo, é que a partir daqui, realizei uma navegação a preceito e com excepção do “152” (oitavo controlo), onde me deixei influenciar pelo trânsito caótico (havia pontos e “pedrolas” para todos os gostos), não tornei a cair em tentação e alcancei um razoável registo, atendendo ao ritmo lento que imprimi (ou que as pernas permitiram).

Vinha tão animado com a prova, que acabei a sprintar como um “teenage” irresponsável (no dia seguinte estava todo espalmado), tendo inclusive, faltado ao respeito a um “senhor” campeão, que teve o “azar” de terminar comigo, hehe! (precisou de se atirar para o chão, para bater o “berdadeiro”).

Quanto à etapa na vertente longa, a “istória” teve outros contornos. Desde logo, duas pernadas extras. Do estacionamento à Arena (1.400 mts de mochila às costas) e daí às partidas (2.500 mts). Tendo em conta a localização da Arena, não percebi esta alternativa da Organização, mas de certeza que tinham bons motivos. Agora, que me desgastou o seu quinhão, não tenho dúvidas.

Durante o trajecto para as partidas, debaixo de chuva persistente, ia conjecturando o pior. Molhado e com frio, só me assaltavam pensamentos negativos. Que raio significaria aquele comentário, de que iríamos percorrer uma zona apelidada de “Gerês do Alentejo”? Mau…cheira-me a “pedrolas” em barda.

E que género de traçado seria o meu, com apenas treze pontos em sete mil e quatrocentos metros? Decididamente não previa vida fácil ao “berdadeiro”, que odeia pernadas ultra longas. Ainda convinha não esquecer, que a prova iria pontuar para o WRE, com a participação de atletas do top mundial, o que pressupunha exigência, tanto técnica como física e alguma coisa haveria de sobrar para o escalão dos super “50`s”. Ai sobrou, sobrou, e de que maneira (pelo menos para mim, claro está, hehe!).

Ao levantar o mapa, percebi de imediato, que aquele lençol me iria criar problemas de manuseamento…e não só. Sou um “mãos de aranha”. E às aranhas fiquei para o ponto de entrada. As pedras só por si, já são obstáculo suficiente, no meio de verdes no limite do intransponível, baralharam-me as curvas de nível e os azimutes durante sete minutos.

Se os verdes iniciais não me tinham caído bem, teria de me habituar rapidamente a eles, pois o segundo controlo situava-se novamente no seu seio, com uma progressão horrível, qual intrépido explorador de mata. Complicado chegar à zona do prisma, mas mais complicado se tornou, dar com ele. Todavia, nem foi dos piores.

A grande odisseia foi sair daquele emaranhado, para rumar ao ponto seguinte, distante 800 metros, com uma árdua travessia de “selva” e passagem quase a nado da ribeira. Sem qualquer atascanço técnico, demorei uma eternidade a controlar o “109” (17,08). Provavelmente haveria melhor opção, mas ainda hoje, não vislumbro qual.

Arranco para mais uma travessia aquática, com a água a ensopar locais sensíveis, que me arrefeceram o corpo e a alma. Salto da água para a vedação, beneficiando de um providencial escadote (gostei deste auxiliar de “cotas”) e trepo para a “pedrola” do “106”, que me proporcionou a primeira pastorícia séria. O mesclado de cinzento e verde provoca-me distúrbios nos neurónios e ainda não encontrei antídoto, capaz de combater a maleita.

Desenvencilho-me a custo de um e vou atascar noutro. O quinto ponto, localizado numa pedra (para variar), envolto em vegetação (outra variante), até me parecia de fácil identificação, mas no mapa aparecia branco onde eu no terreno só vislumbrava área aberta, polvilhada de meia dúzia de sobreiros (ou azinheiras, ou oliveiras, ou…). Pois é, a tal simplificação “viking” tramou-me. A falta de confiança imperou, duvidei do local e andei à nora mais uns quantos minutos (nem os quantifico por vergonha).

Arreliado com o sucedido, atiro-me para a pernada mais longa do dia (1.300 mts), não tomando as devidas precauções e quando os pormenores começam a não condizer, constato que tinha virado o mapa ao contrário. Chiça! Tudo acontece aos desgraçados dos “berdadeiros”. Duzentos metros para um lado e os mesmos de retorno. As asneiras e a dureza do percurso começavam a pesar-me no físico e na psique.

Arrastando-me o melhor que podia, rumei ao longínquo destino, numa altura em que a chuva caía com mais intensidade e dando início à transposição das zonas pantanosas. Áreas de boa visibilidade, mas que pessoalmente se traduziram num sacrifício dos diabos. Enquanto observava, com uma pontinha de inveja, companheiros a sobrevoar a lama como borboletas, atascava-me valentemente até aos artelhos (qual paquiderme), tendo dificuldade em manter as sapatilhas calçadas (parecia cola).

Ao abordar a zona do ponto, reparei que iria ser mais do mesmo, encontrar o prisma na confusão de “pedrolas” e verdes. Arre! Não havia disponível mais nenhum elemento característico? Como estava no sítio certo, lá saiu uma alma caridosa detrás de um pedregulho, que escondia o “123”. Um nico de sorte no meio de tanta contrariedade.

Mais uma viagem de 1.100 metros, debaixo de água e vento, que me deixaram os óculos inoperacionais, bússola baça e mapa encharcado. Numa opção pouco ortodoxa (leia-se, incompetente), arribei aos afloramentos pretendidos, mas ainda necessitei de uns ziguezagues pastorais, para picar o ponto.

Depois de um trajecto de menor distância, donde não me saí mal, reaparece uma pernada das violentas (1,200 mts). Se o terreno estivesse seco, seria uma confortável auto-estrada, assim, foi nova consumição para o “berdadeiro”, que nem levantava os pés (um autêntico arado). Para me atazanar ainda mais o miolo, a “red line” obrigou-me a encarrapitar numa vedação, com os consequentes arranhões da praxe (grr…que ódio tenho aos arames).

Com o encurtar das pernadas e diminuição da chuva, fiquei mais lúcido, mas o ponto 11 poderia ter outra “istória”. Quando seguia na sua direcção, sou ultrapassado por dois parceiros de escalão. Um deles considero-o um dos mais equilibrados do grupo. O outro…bom…é meu colega de equipa…nem vale a pena comentar. O que fariam vocês? Deixavam os ir, sem uma ajudinha?

Confesso que baixei o mapa, aproveitando as forças que me restavam para não lhes perder o rasto, no mínimo até à baliza. De princípio achei estranho o desvio deles para a esquerda, só que naquela altura do campeonato, não tinha qualquer voto na matéria (mas devia!). Acreditam que os craques se atascaram? Duas linhas de água em V e zás…procura do ponto na margem do fosso errado (snif…e eu que levava o azimute certo…snif…).

Por vários motivos e mais um, nem equacionei a hipótese de continuar na sua…glup…custa-me dizer…glup…cola (shiu!). Também só faltavam dois controlos para terminar. Lá continuei no meu ritmo (devagar, devagarinho e parado), sem mais nenhuma contrariedade (se exceptuarmos o lameiro infernal), para concluir completamente exausto, feito num oito, com a grata sensação do dever cumprido, mas aborrecido, bastante aborrecido. As “pedrolas” mais uma vez tinham levado a melhor.

Num dia, a esperança renasceu; no outro, foi reduzida a cinzas (ou lama?).

 

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