(Texto extenso, largo o penar)
Quando um dos elementos da Organização, durante o trabalho de campo do MOC, em pleno pinhal do Pedrógão, apelidou o mapa da distância longa de “mata-velhos”, deveria ter sido premiado pela sua originalidade, perspicácia, sentido de humor e capacidade premonitória.
Perante uma designação a roçar um arrepiante filme de terror, fiz questão de dar razão ao seu autor e protagonizei uma das piores performances de que tenho memória. – “Performance o tanas! Um chorrilho de imbecilidades!”. Numa altura em que me encontro a terminar a quinta época como praticante, foi um comportamento de bradar aos céus. Um dia destes ainda perco a paciência e elimino o “berdadeiro”.
Depois de tomarmos conhecimento deste tratamento tão cru, em relação às características do mapa, ninguém estava à espera de facilidades, mas não me passava pela cabeça, que me iria deparar com uma autêntica cordilheira de dunas “lunares”, do género das que eu já experimentara em Pataias.
Ao analisar as informações técnicas, onde o mapa estava publicado, fiquei apreensivo com o intenso rendilhado de curvas de nível, só que mantive sempre a esperança, que essa zona não me calhasse em sorte. Mas se o inspirado Domingues lhes chamou carinhosamente de “mata-velhos”, de que raio estaria eu à espera? O meu escalão é ou não de anciãos? Pessoalmente eu chamar-lhes-ia “cotas”, mas gostos não se discutem.
A jornada do dia anterior tinha-me deixado algo combalido, resultado do excesso de pastagem, que quase transformou a média em longa, o que não configurava o cenário ideal para quem se preparava para percorrer 8.100 metros e 24 controlos, nos domínios das “mata-velhos”. Se as coisas dessem para o torto, o esqueleto iria queixar-se e era bem capaz de não corresponder ao exigido. A consequência inevitável de quem foge dos treinos, como o diabo da cruz.
Tentando superar a fadiga que me atormentava, realizei as pernadas iniciais em ritmo lento, no intuito de evitar deslizes, o que veio a acontecer com uma excepção ou outra, mas nada que pudesse ser considerado no capítulo dos atrasos pastorais. O problema centrava-se na dureza do terreno, dado que tive de enfrentar um par de dunas monumentais (pontos 9 e 10), precisando de usar os meus “conhecimentos” de montanhismo para as ultrapassar (a original técnica “felina” de joelhos no chão, unhas na areia).
No final das progressões “alpinas”, comecei a sentir um desgaste físico anormal e preocupante, que progressivamente me foi atrofiando os movimentos, apesar de me ter hidratado sempre que podia. Enquanto não cometesse asneiras, a força moral ia superando a deficiência física.
Quando invado definitivamente o coração das “mata-velhos”, para dar resposta a quatro pontos técnicos, localizados em reentrâncias e depressões, camuflados no meio de vegetação densa mas penetrável, acontece o que eu mais temia – pastorícia injustificável e das antigas. Se os primeiros pontos desta série terrível ainda foram controlados de forma exímia, os dois seguintes (13 e 14) resultaram num desastre total. Num instante passei do oitenta para o oito.
As progressões que já não vinham sendo fáceis, com a transposição constante de dunas compostas de seis e sete curvas de nível, ficaram ainda mais complicadas, quando resolvi subir e descer de borla, um monte dos mais íngremes, na procura do “185”. Se me encontrava quase agonizante, este atascanço seguido de imediato de outro muito superior, liquidou-me por completo, deixando-me à beira da desistência. Duas balizas que deveriam ser controladas entre sete a nove minutos (perfeitamente ao meu alcance), demorei qualquer coisa como 34,12! (Uff! Uma verdadeira distância média)
No entanto, nem foi esta perda de tempo que me levou quase ao “suicídio”, o que realmente estourou com as forças do “berdadeiro”, foram as voltas demolidoras que dei ao carrossel de dunas, sem conseguir um salvador minuto de raciocínio. Enquanto andava em peregrinação sem qualquer resultado prático, a hipótese de desistir ganhou força, tão fraco me sentia (o ânimo que me restava tinha-se esgotado).
Tão depressa queria desistir, como logo continuava a procurar solução que me tirasse daquele buraco. A parte “berdadeira” da minha cabeça lutava arduamente com a facção de verdadeiro orientista. Após muito porfiar, acabei por alcançar o ponto 14, mas estava de tal forma extenuado, que a capacidade para me orientar para o seguinte esvaiu-se. Nessa altura passa um companheiro de escalão todo fresco, que tinha dado conta da minha dificuldade uns minutos antes, que me dirige um incentivo ao perceber que me aprestava para parar, mas nem vontade tive de articular palavra.
Estudando o mapa, para entender o que teria pela frente nos dez pontos que faltavam, reparei num ponto de água que me poderia dar algum conforto, mas ao constatar que a pernada seguinte seria a mais extensa (1.200 mts), baixei os braços e decidi seguir a passo até ao local e daí rumar à Arena. Oh frustração!
Ainda antes de matar a sede, a debilidade atingiu o seu pico, quando ao trepar a reentrância do décimo quinto ponto, as pernas me falharam e tombei para o lado como um saco de batatas. Fiquei de papo para o ar largos minutos, com o fantasma da incompetência a pairar, a admirar a copa das árvores e o chilrear da passarada (apetecia virar para o lado e fazer uma soneca) questionando-me porque ainda não havia desistido. Estava a desenvolver um esforço sobre-humano com que finalidade, se mal me mantinha em pé? As “mata-velhos” tinham cumprido o seu objectivo. Um deles jazia no solo, absolutamente inoperacional, mas vivo!
Muito a custo, ergui-me novamente, controlei o ponto e cambaleando, tentei chegar à água para então descansar. Um dos escuteiros do abastecimento reparou na minha marcha vacilante e veio em meu auxílio, mas naquele momento eu só necessitava de líquidos e de um assento, não de um ombro para carpir mágoas.
Com o desenrolar das peripécias, nem me lembrei de ingerir a minha barrinha de cereais. Assim, descansei, bebi, comi e planeei o melhor percurso que me levasse para “casa”. Podia e devia ter optado pelo estradão, mas sabe-se lá porquê, resolvi rumar pelos trilhos. O “berdadeiro” desistia ao fim de 15 pontos e perto das duas horas de prova, mas recusava ir à boleia, seguiria pelo próprio pé, só que de cabeça baixa. Julgaria eu que a desistência assim teria mais dignidade? (lírico!)
Mais uma vez a opção não foi a adequada, pois de repente enfiei-me na areia até aos tornozelos, na subida da última duna da região das “mata-velhos”. Mesmo na desistência, quis fazer um bonito e só compliquei a minha vida, grrr…que nervos…mal tive oportunidade apanhei definitivamente o estradão e dobrei o mapa.
Na viagem de regresso, arrastando-me debaixo de um sol inclemente, a sede voltou a incomodar, lembrei-me que tinha passado antes por ali e que existia algures um ponto de água. Desdobrei mais uma vez o mapa para o identificar (erro fatal ou o inconsciente a ordenar?) e dou de caras com aquele que seria o meu ponto seguinte (onde terminava a tal pernada de quilómetro), que se situava a escassas dezenas de metros do estradão. – “Vai ver o ponto, até é perto, não custa nada e foges do sol”. Além de o ir visitar, resolvi picá-lo. Porquê? A resposta vem a seguir.
- “Olha o 17, é aqui a 150 metros num tufo verde, podias dar uma espreitadela”. A vozinha mandou, eu obedeci e voltei a picar. Aqui sou quase atropelado por um grupo de galegos (ou andaluzes?), que sintonizaram o meu bip. Olhei para os tipos e deu-me a sensação que seriam sobreviventes das “mata-velhos”. – “Então eles ainda andam por aqui?”
Consultei o cronómetro, que estranhamente continuava a trabalhar (o mais correcto teria sido desligá-lo quando desisti), verifiquei que ainda sobravam uns minutos razoáveis para o limite das três horas regulamentares e tive mais uma decisão inexplicável. Encontro-me na zona da Arena…só faltam sete pontos relativamente simples…c`os diabos que se lixe…ressuscitei…vou terminar esta tragédia…não acredito que estou a ver o “finish”.
Decerto não precisarei de vos elaborar um desenho, de maneira a que entendam o que se passou. Talvez a energia da barrinha tenha gerado um óptimo efeito; porventura nunca quis desistir, apenas pensei no assunto; quiçá, não pretendi pagar a multa regulamentar ao clube; provavelmente o orgulho do “berdadeiro” orientista falou mais alto.
- “Não será que sofres da estirpe benigna do vírus, que ataca todos os praticantes de Orientação e esqueceste de tomar as gotas?”
Claro que o tempo final, não é facto de que me possa envaidecer, mas certamente fiquei mais satisfeito do que se tivesse levado a desistência por diante. Aquele mapa que tinha tanto de arrasador como de espectacular e desafiante, não merecia a minha renúncia. De que valeria o sofrimento por que passei? As dores musculares, os vómitos, as unhas negras, as bolhas sangrentas, os doze quilómetros percorridos…os copos de água que ingeri? (hic!)
Posso demonstrar as capacidades físicas e técnicas de um “berdadeiro”, mas pelo menos espero que concordem, que o espírito indómito que caracteriza um verdadeiro orientista me corre velozmente nas veias.