18 anos ao serviço do Desporto em Portugal

publicidade

 

Canícula absoluta (I)

Se notarem alguma falta de nexo nestas linhas, não dêem grande importância, pois ainda me encontro meio grogue, sob o efeito do sol abrasador que apanhei na “moleirinha”, na dupla jornada de Vendas Novas, onde decorreu o Campeonato Nacional Absoluto.

Nem vos digo, nem vos conto! Sinto-me enjoado de tanta água que ingeri, que receio ter os níveis aquíferos saturados. No entanto, a minha mulher diz que é precisamente o contrário, que ainda estou um pouco desidratado. Mas aqui para nós, julgo que com um tratamento intensivo à base de concentrados de cevada oriundos da “Unicer”, me ponho fino em dois tempos (sou um ás em auto-medicação, hehe).

Foi debaixo duns sufocantes e esturricadores trinta e três graus, que o espécie de orientista penetrou no mapa da Herdade do Vale, na Landeira, para realizar a prova de apuramento que dava acesso à final. – “Para quê o sacrifício se vais ficar de fora? Tens de comer muita papa maizena!” – nem com esta canícula infernal a “vozinha” me dá sossego.

O Clube de Praças da Armada, ao oferecer-nos um agradável mapa de montado alentejano, tinham com certeza a ideia de não complicar demasiado a situação e resguardar-nos para a prova da verdade no segundo dia. O problema é que neste género de terreno, as sombras não proliferam (há défice de chaparros), o que não ajuda nada em dia de temperaturas anormalmente altas.

Ainda não tinha passado o triângulo e o bafo escaldante já me estava a atrofiar a respiração. Igualmente, o pensamento nos 6.000 metros e 17 controlos que tinha pela frente, não favorecia o meu mal-estar (naquelas condições, nem que fossem cem metros).

Desde cedo comecei a sentir necessidade imperiosa de beber e nem me passava pela cabeça, a contrariedade que haveria de suportar. No mapa não figurava qualquer ponto de água (o regulamento não prevê para estas distâncias), mas a Organização decidiu instalar um, numa passagem obrigatória para todos os participantes (com tanto calor, foi uma atitude de bom senso). Ao examinar o mapa deduzi que esse local coincidiria com o meu ponto 12, o que traduzido daria mais de quatro mil metros a “morrer de sede”. Ia ser o bom e bonito – andamentos céleres, encontrar os pontos, arfando como um cão (com “pedigree”, ok?) – esboçava-se empreitada complicada.

Demorei quase cinco minutos a chegar ao primeiro ponto (600 metros?), sem nenhum contratempo técnico, o que desde logo fazia prever que o meu ritmo se aproximaria do “passo de caracol ao sol”. Ora, isto é coisinha ruim, porquanto mais tempo lá andasse, maior seria o perigo de queimar as peles ou apanhar uma demolidora insolação (o meu boné “amuleto” foi atenuando o desconforto). E a sede? Ai Jesus! Ainda faltava muito para o ponto 12?

A nossa modalidade tem aspectos “sui generis”, de tal forma que um tipo “moribundo” nem se apercebe do seu estado. Entretido que estive com o aparecimento pacífico das balizas, tendo de fugir a diversas zonas de silvados (um bom auxílio à orientação), durante uma dezena de pontos abstraí-me do tormento da canícula, cumprindo as pernadas dentro de parâmetros aceitáveis para a espécie (abaixo dos 10´/Km).

As complicações começam quando entramos numa de “guardador de porco preto”, que foi mais ou menos o que me aconteceu, quando perdi de vista um tufo de vegetação densa que escondia o ponto 11. Bastaram três minutos de “espantalho” a tentar localizar o dito cujo, para a torreira inclemente me deixar num estado letárgico a necessitar urgentemente de repouso ou de água…muita água (baldes e baldes). Salivei um pouco para enganar a secura, mentalizei-me que a “fonte da vida” apareceria de imediato, que até deu para correr em bom ritmo, aproveitando um providencial carreiro, em direcção ao tão ansiado “oásis” (o meu melhor parcial), mas a fadiga estava à espreita.

Nas imediações do local, os malandros dos “praças” ainda nos obrigaram a transpor uma sempre irritante vedação de arame, para dar mais valor ao prémio da água (e acrescentar dois rasgões na farpela), só que aconteceu um imponderável. Alguém tinha “assaltado” o ponto de abastecimento e não deixou uma gota do líquido milagroso (se fossem “minis” era compreensível, assim…não lhes gabo o gosto, hehe).

O responsável da logística não levou em conta a sofreguidão da rapaziada e ao fim de uma hora, o stock entrou em ruptura, gerando uma quantidade de desfalecimentos, enquanto não houve reposição. Situação que também provocou algum azedume, como aquele “elite” menos atento, que chegado ao “bar”, não vendo os copos cheios, interpelou o moço em jeito de raspanete – “onde pára a água, meu?” – isso queria eu saber!

Para mal dos meus pecados, passei na altura crítica, tendo de seguir viagem, mais sedento que lacrau do deserto. Ainda equacionei a hipótese de aguardar pelo reabastecimento, mas caramba, estava a efectuar um percurso engraçado e afinal para que me serve o tal elevado espírito de sacrifício que ando constantemente a apregoar?

– “Não quererás dizer inconsciência?” – “Desculpa, mas a tua irmã não é para aqui chamada”.

Efectivamente, não tinha a noção de que me encontrava a roçar os limites da exaustão. Moralizado com o acerto técnico, decidi não perder tempo (“só falta um bocadinho”) e ataquei os três prismas seguintes, qual deles o mais difícil de trepar (quando estamos esgotados, um montículo de terra assemelha-se aos “Himalaias”), que acabaram por esgotar as minhas parcas energias. Tentei gerir o difícil momento, mas só com muito sofrimento o ultrapassei. Restou-me continuar a passo e aproveitar a embalagem da descida vertiginosa que antecedia o penúltimo controlo, engatando uma tímida corridita, para conseguir terminar sem mais nenhum percalço de ordem física.

Infelizmente ainda apanhei um valente susto, quando já depois do “200”, a escassos metros do “finish”, deparo com um concorrente inanimado a ser assistido por outros companheiros. O nosso atleta menos jovem tinha tombado por desidratação. Mas o “Grande Costa” é feito duma cepa das antigas, umas horas a soro recompuseram-no e no dia seguinte já estava pronto para outra – o verdadeiro espírito de orientista – torce mas não quebra.

Para evitar cair no ridículo, não me vou vangloriar dos meus modestos sessenta e nove minutos, mas atendendo às condições adversas em que os realizei, poderia estar aqui a carpir umas mágoas. Por outro lado, analisando os acontecimentos pela positiva, afinal só uns “míseros” vinte e quatro minutos me separaram do apuramento (hehe), quando no ano transacto me tinha quedado a trinta e cinco. Espectacular evolução da espécie! (apenas Darwin a poderia explicar) 

Periodicidade Diária

quinta-feira, 28 de março de 2024 – 08:24:06

Pesquisar

Como comprar fotos

publicidade

Atenção! Este portal usa cookies. Ao continuar a utilizar o portal concorda com o uso de cookies. Saber mais...